terça-feira, 24 de março de 2015

Meu paciente me indagou: “Você não sabe do que estou falando porque você não é...”




Esta semana estava tendo um saudável debate em uma mesa de almoço com colegas de profissão a respeito da prática clínica, e se havia a necessidade ou não de o psicólogo clínico estar obrigatoriamente em processo de “análise” para ter legitimidade para conduzir um processo terapêutico na vida de alguém. Confesso que não chegamos à uma conclusão no momento, e que muito provavelmente não chegaríamos em um momento posterior, mas me coloquei a refletir sobre o fato e encontrei vários momentos em que a legitimidade do psicólogo é questionada, principalmente na situação clínica (ou pode ser em qualquer outro contexto), e passo a citar alguns exemplos:

  1. O psicólogo é recém formado, com 25 anos de idade, e vai ser terapeuta de um homem de 50 anos, daí escuta do seu paciente: “Eu já vivi o dobro de sua vida, o que você pode saber para me ajudar?”
  2. O psicólogo solteiro, com formação em terapia de casais, ao fazer um atendimento de um casal em crise, escuta: “Mas como você poderia saber disso?! Você não é casado!”.
  3. O psicólogo, atendendo uma mulher: “Isso é coisa de mulher, você não entenderia”.
  4. A psicóloga branca, atendendo uma paciente negra que declara sofrer de racismo: “Você é branca, não sabe o que é racismo”.
E assim, por diante...

Então vamos colocar alguns fatos:

Seguindo a mesma lógica, um médico não pode tratar uma paciente com AIDS ou Câncer, porque não tem a doença; ou um Piloto de Avião não pode voar porque não foi feito com asas; ou ainda, um Sushiman não pode fazer sushi porque não nasceu no Japão... Enfim, por mais toscos que sejam os exemplos, eles evidenciam o lapso lógico que existe nesta linha argumentativa, ao tentar afirmar que as pessoas só possuem legitimidade para fazer algo se cumprirem com um requisito “A” determinado por alguma parcela social que convencionou o fato.

Immanuel Kant (11724-1804) diferenciou há dois século o que ele chamou de Razão Pura de outra chamada Razão Prática, sendo a primeira aquela que, com o uso da intuição filosófica, seguida da razão, era capaz de decifrar o conhecimento porque o mesmo seguiria princípios universais, ao passo que a segunda, nada mais seria do que o conhecimento empírico, aquele advindo da experiência. O que Kant quis dizer foi que, nem todo conhecimento precisa advir da experiência para que seja racional ou para que seja válido. Parafraseando, eu não preciso ter experimentado todas as coisas do mundo para extrair conclusões a respeito delas, porque existe determinada lógica, ou princípios que regem tal conhecimento, e cabe ao crítico da razão pura, decifrá-los.

E para terminar, reduzir a validade de todo conhecimento à experiência é um argumento reducionista que é, de igual forma, insustentável graças à sua contraditoriedade: “Como você pode afirmar que só é possível saber de todas as coisas experimentando-as, se você nunca experimentou todas as coisas para saber disso?” É que no fim, por mais iguais que sejamos, somos todos diferentes, de qualquer forma.

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Imagem: Extraída do Google Imagens

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Sobre o autor:

Murillo Rodrigues dos Santos, é psicólogo (CRP 09/9447) pela PUC Goiás (Brasil), com graduação sanduíche e estágio em Terapia Sistêmico Relacional de Casais e Famílias pela Universidad Católica del Norte (Chile). Possui aperfeiçoamento profissional pela Brown University (Estados Unidos) e Fundación Botín (Espanha). Mestrando em Psicologia pela Universidade Federal de Goiás (Brasil). Atualmente é pesquisador pela CAPES/MEC e presidente da Rede Goiana de Psicologia.

Sobre a Rede Goiana de Psicologia

A Rede Goiana de Psicologia é uma organização estadual de coolaboração acadêmica e profissional, criada no ano de 2014 com o objetivo de fortalecer a nossa a psicologia enquanto ciência e profissão através de uma série de projetos. Quer saber mais sobre nós? Clique no link "sobre nós" no menu principal.

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