Esta semana estava tendo um
saudável debate em uma mesa de almoço com colegas de profissão a respeito da
prática clínica, e se havia a necessidade ou não de o psicólogo clínico estar
obrigatoriamente em processo de “análise” para ter legitimidade para conduzir
um processo terapêutico na vida de alguém. Confesso que não chegamos à uma
conclusão no momento, e que muito provavelmente não chegaríamos em um momento
posterior, mas me coloquei a refletir sobre o fato e encontrei vários momentos
em que a legitimidade do psicólogo é questionada, principalmente na situação
clínica (ou pode ser em qualquer outro contexto), e passo a citar alguns
exemplos:
- O psicólogo é recém formado, com 25 anos de idade, e vai ser terapeuta de um homem de 50 anos, daí escuta do seu paciente: “Eu já vivi o dobro de sua vida, o que você pode saber para me ajudar?”
- O psicólogo solteiro, com formação em terapia de casais, ao fazer um atendimento de um casal em crise, escuta: “Mas como você poderia saber disso?! Você não é casado!”.
- O psicólogo, atendendo uma mulher: “Isso é coisa de mulher, você não entenderia”.
- A psicóloga branca, atendendo uma paciente negra que declara sofrer de racismo: “Você é branca, não sabe o que é racismo”.
E assim, por diante...
Então vamos colocar alguns fatos:
Seguindo a mesma lógica, um
médico não pode tratar uma paciente com AIDS ou Câncer, porque não tem a
doença; ou um Piloto de Avião não pode voar porque não foi feito com asas; ou
ainda, um Sushiman não pode fazer sushi porque não nasceu no Japão... Enfim,
por mais toscos que sejam os exemplos, eles evidenciam o lapso lógico que
existe nesta linha argumentativa, ao tentar afirmar que as pessoas só possuem
legitimidade para fazer algo se cumprirem com um requisito “A” determinado por
alguma parcela social que convencionou o fato.
Immanuel Kant (11724-1804)
diferenciou há dois século o que ele chamou de Razão Pura de outra chamada Razão
Prática, sendo a primeira aquela que, com o uso da intuição filosófica, seguida
da razão, era capaz de decifrar o conhecimento porque o mesmo seguiria
princípios universais, ao passo que a segunda, nada mais seria do que o
conhecimento empírico, aquele advindo da experiência. O que Kant quis dizer foi
que, nem todo conhecimento precisa advir da experiência para que seja racional
ou para que seja válido. Parafraseando, eu não preciso ter experimentado todas
as coisas do mundo para extrair conclusões a respeito delas, porque existe
determinada lógica, ou princípios que regem tal conhecimento, e cabe ao crítico
da razão pura, decifrá-los.
E para terminar, reduzir a
validade de todo conhecimento à experiência é um argumento reducionista que é,
de igual forma, insustentável graças à sua contraditoriedade: “Como você pode
afirmar que só é possível saber de todas as coisas experimentando-as, se você
nunca experimentou todas as coisas para saber disso?” É que no fim, por mais iguais que sejamos, somos todos diferentes, de qualquer forma.
-------------
Imagem: Extraída do Google Imagens
-------------
Murillo Rodrigues dos Santos, é psicólogo (CRP 09/9447) pela PUC
Goiás (Brasil), com graduação sanduíche e estágio em Terapia Sistêmico
Relacional de Casais e Famílias pela Universidad Católica del Norte (Chile).
Possui aperfeiçoamento profissional pela Brown University (Estados Unidos) e
Fundación Botín (Espanha). Mestrando em Psicologia pela Universidade Federal de
Goiás (Brasil). Atualmente é pesquisador pela CAPES/MEC e presidente da Rede
Goiana de Psicologia.
0 comentários:
Postar um comentário