Muitas das certezas e das
categorias psicológicas que temos hoje não estava presentes na sociedade 100
anos atrás; e se formos além, outras dezenas de centenas de anos atrás, nos
espantaremos ainda mais com a ausência de coisas que para nós são tão naturais.
Um dos mitos mais interessantes que possuímos, no senso comum, é o do amor
materno: Badinter (1985) foi uma das teóricas que desenvolveu a ideia de que o
amor materno nada mais era do que um mito insustentável, pois não se tratava de
um sentimento inato, mas de um sentimento que seria evolutiva e socialmente construído.
E com base nesta ideia central, vários teóricos discorreram sobre o tema, desde
a psicanálise à psicologia evolucionista.
O exemplo acima citado é somente
um dos mais gritantes e que mais assusta os leigos ao primeiro ponto de vista,
mas existem diversos outros sendo que um deles, se tornou objeto deste texto: A
infância.
A infância, como hoje a
conhecemos, não existia antes do século XVI, e só se tornou possível graças a
duas questões: A criação da Escola e da Família Nuclear Moderna (Ferreira,
2006). Anteriormente a isto, se fizermos uma reconstrução histórica, veremos
que nas sociedades anteriores, não havia uma representação social do que seria
uma infância: as crianças que sobreviviam à fome, peste ou a guerra, eram logo
enviadas para “missões” para aprenderem a serem guerreiras, caçadoras,
coletoras, agricultoras. E assim foi desde as sociedades mais tribais, até a
Idade Média.
Em grande parte das comunidades
antigas, as “crianças” eram enviadas para serem criadas pelas “Amas de Leite”,
talvez como uma das maneiras de evitar com que as mães da época sofressem com
as penas emocionais da alta taxa de mortalidade infantil. As que sobrevivessem
até os 4 ou 5 anos, eram enviadas de volta para os lares para passarem por um
período de treinamento, que se resumiam às habilidades sociais desejadas às
épocas.
Vários são os pontos que reforçam
esta tese, segundo Ferreira (2006), como por exemplo o fato de que não havia separação dos espaços da casa
para crianças e adultos, o que fazia com que os filhos estivessem totalmente
expostos a vida sexual dos pais, por exemplo; Também não havia nenhum tipo de literatura específica voltada para as
crianças, sendo comuns com que aprendessem com as mitologias dos adultos, ou as
tragédias, bem como clássicos filosóficos como os diálogos platônicos; Outro
ponto é que não havia uma pedagogia
para as crianças, sendo que as poucas escolas que existiam na época não
separavam os alunos por idades; Nas guerras era comum (e ainda é em algumas
sociedades atuais) que crianças empunhassem armas como soldados.
Mas o quadro comela a reverter-se
a partir do século XVI, com a possibilidade de apego fornecida pela diminuição
da mortalidade infantil, assim como peça ética católica de um grupo de padres
que apregoavam uma suposta inocência nos primeiros anos de vida: aqui se
estabelece a pureza como essência moral, que seria algo original nas crianças.
E assim funda-se uma nova ideia psicológica para a periodização do
desenvolvimento humano.
Outro exemplo moderno que podemos
citar aqui é o da existência de “psicopatas” infanto-juvenis, que desafiam a
lógica da moral da pureza católica instaurada na psicologia. Mesmo que se trate
de casos aparentemente raros ou isolados, a possibilidade da existência destes
mostra-se como um desafio à ideia da pureza original das crianças.
Ou seja, a categoria “infância”
como a conhecemos hoje, possui muito mais elementos do que o senso comum
poderia imaginar, e a nós como psicólogos cabe compreender estes movimentos de
constituição de categorias históricas das quais tratamos como tão certas, mas
que são mais um exemplo da capacidade humana de organizar-se para a vida
social.
Referências
Badinter, E. (1985). Um amor conquistado: o mito do amor materno
(W. Dutra, Trad.). Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
Ferreira, A. A. L. (2006). O
múltiplo surgimento da psicologia. Em, Ferreira, A. A. L., & Jacó-Vilelra, A.
M. (Orgs). História da psicologia: rumos
e percursos. Rio de Janeiro: Editora Nau, pp. 13-46.
Imagem: Extraída do Google Imagens.
Murillo Rodrigues dos Santos, é psicólogo (CRP 09/9447) pela PUC
Goiás (Brasil) com graduação sanduíche e formação em Terapia
Sistêmico-Relacional de Casais e Famílias pela Universidad Católica del Norte
(Chile). Possui aperfeiçoamento profissional pela Brown University (Estados Unidos)
e pela Fundación Botín (Espanha). Mestrando em Psicologia pela Universidade
Federal de Goiás (Brasil). Atualmente é pesquisador pela CAPES/MEC e presidente
da Rede Goiana de Psicologia.
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