A Psicologia clínica é, com
certeza, a área de maior visibilidade de nossa ciência: Isso porque o modelo
psicanalítico, maior expoente primário da prática, que fez tanto sucesso no
século XX, ainda possui suas reminiscências na mídia, universidades e no
imaginário coletivo. Outro fator que pode ter ampliado a visibilidade da
clínica psicológica foi a sua adoção do modelo biomédico de atuação – a psicologia
“clínica” foi um termo cunhado por Lightner Witmer (1867-1956) nos Estados
Unidos, por volta do ano de 1907 (Perez & Bauman, 2005), ao tomar o termo
emprestado da medicina. Outro fato que ajudou o estabelecimento da Psicologia
Clínica com modelos biomédicos foi que os grandes difusores desta prática,
através da psicanálise, eram em grande maioria médicos, como Sigmund Freud (1856-1939
), Alfred Adler (1870-1937), René Spitz (1887-1974), Donald Winnicott (1896-1971) dentre outros.
Mas a medicina também não se resumiu somente à área da psicanálise – Fritz Pearls
(1893-1970) pai da Gestalt Terapia também era médico, por exemplo.
O que acontece é que a herança
legada pela medicina para a psicologia não se resume somente ao nome “Psicologia
clínica”, mas em parte, também à concepção de sujeito desta prática: Muitas
escolas da psicologia clínica entendem o sujeito “em tratamento”, através de “sessões
de terapia” e o chamam de “paciente”. Tais nomenclaturas são muito mais do que
meras conveniências ou casualidades, o que eu pretendo demonstrar a seguir.
Entendendo isto, por exemplo, a
Gestalt Terapia, como forma de demarcar a sua postura diferente, passou a
adotar a terminologia “cliente” para o sujeito na psicologia clínica. Isso se
deve pelo fato desta escola adotar abertamente uma postura humanista
existencial que se contrapunha ao determinismo psíquico na clínica
psicanalítica, da visão de “paciente” do sujeito na clínica.
Todavia, não quero apresentar as
diferentes concepções das escolas a respeito do sujeito no processo clínico,
mas dizer o que a ideologia dominante representou para a atuação do psicólogo
na atualidade.
Quem nunca escutou a seguinte
frase: “Vou ao psicólogo e ele só fica perguntando como eu estou me sentido?”
ou ainda, “Tudo o que eu pergunto para o psicólogo ele me responde: ‘Mas e
você, o que você acha?”... Essas falas são usadas pelas pessoas como protesto
contra a obviedade da intervenção psicológica no ambiente clínico, e com razão,
afinal de contas, para que pagar suados R$ 100, R$ 200 ou R$ 300 em uma
consulta tautológica?!
Tal postura de feedback de
obviedades se deu graças ao entendimento, errôneo em meu ponto de vista, da
postura do psicólogo diante do sujeito. Isso porque se entende um sujeito
totalmente distorcido da realidade em certos aspectos: Ok, entende-se que o
sujeito em atendimento clínico é um sujeito fragilizado pelas circunstâncias,
mas o fato é que muitas vezes é um ser que, na clínica, é diminuído em sua
autonomia em prol de um discurso de não interferência. Como assim? Simples, o
sujeito na clínica possui a tendência quase natural de perguntar “o que você
acha disso ‘doutor’?”, em um movimento de busca de referência (ou confirmação)...
mas este acontecimento muitas vezes “acua” os terapeutas que foram ensinados a “não
in(ter)ferirem para não sugestionar o paciente”.
Idealmente a postura da não interferência
é “quase perfeita”, todavia, levada ao extremo, ela é um princípio motor para a
manutenção de uma clínica de obviedades. A pergunta que eu sempre me faço é: O
sujeito na clínica é tão passivo assim? Ao ponto de aceitar qualquer
intervenção psicoterapêutica como verdade absoluta de maneira inquestionável?
Sim, ele pode (quase tudo é possível na clínica em se tratando de comportamento
humano), mas na grande maioria das vezes não! O que passa é que os psicólogos
por conta de uma ideologia clínica tem subestimado a capacidade dos seus “pacientes”
de serem sujeitos ativos em um processo terapêutico.
O que passa é que tudo depende da
relação estabelecida entre o profissional e o cliente, e idealmente esta
relação deve ser baseada no fortalecimento da autonomia do sujeito.
Interessantemente, esta postura do paciente como sujeito ativo que não é uma
porta escancarada para o sugestionamento do terapeuta já vem sendo defendida
por González Rey (2007) em uma nova perspectiva de clínica.
Tudo depende da maneira como
olhamos para o sujeito que está diante de nós, da maneira como estabelecemos
nossa relação com ele, e dos objetivos da ação clínica: Deve-se olhar para cada
sujeito em sua particularidade, e também inserir-se como psicólogo sujeito
ativo no processo – muitas vezes, o que o “paciente” quer é uma simples opinião
do profissional para estabelecer uma referência, não quer dizer que ele vá
adotar cada palavra do terapeuta como literais conselhos.
Lembro-me de uma vez em que no setting clínico uma pessoa me perguntou:
“Você, por acaso, não faria a mesma coisa que eu fiz nesta situação?” ao passo
que eu respondi “Não, eu não faria deste jeito, eu provavelmente faria
(expliquei a maneira)..., mas o que acontece é que você não sou eu, e que não estamos
tratando de uma hipótese”... O cliente se surpreendeu como uma resposta tão
direta assim (já que estava acostumado com psicólogos respondendo “Não importa
o que eu faria, eu quero saber o que você faria, ou como faria diferente”), e
no final disse, “é... realmente, eu poderia ter feito de outra maneira”. O que
acontece é que, neste caso em especial, o cliente entendeu que ele tinha outras
possibilidades da agir no mesmo problema, e que não tinha sido capaz de vê-las
até o momento. O trabalho com ele seguiu para que este pudesse ampliar a
percepção de suas possibilidades de atuação diante de seus problemas e para
deixar de trabalhar no “mundo do ‘SE’”.
O que acontece no caso acima é
que, a relação foi trabalhada com base no pressuposto de dois sujeitos ativos
que construíram uma relação respeitosa e com os objetivos e limites bem
estabelecidos. Exemplos como este, para mim, reforçam a ideia de que o sujeito
que está diante de nós é autônomo e ativo, e tem uma capacidade de
autorregulação que muitas vezes é subjugada pelo pensamento clínico.
Não se trata de sair fazendo
inferências, dando palpites ou sugestões na vida do paciente, mas ser sincero,
honesto e se posicionar como sujeito ativo na relação. Essa postura ativa na
relação terapêutica deve ser seguida pelas duas partes, tanto do cliente como
do terapeuta, pois o terapeuta, ao se colocar em uma relação profissional,
também é dotado de singularidade, e esta é um elemento decisivo no processo
clínico para estabelecer as referências de limites até mesmo para o cliente. O
que temos que ter neste ponto é, uma maior reflexão sobre maneira como olhamos
o sujeito na clínica.
Referências
González Rey, F. L. (2007). Psicoterapia,
subjetividade e pós-modernidade: uma aproximação histórico cultural. São
Paulo: Thomsom .
Perez, M. & Bauman, U.
(2005). Lehrbuch klinische Psychologie - Psychotherapie, 3. Aufl. Bern: Huber.
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Imagem: Google Imagens
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Murillo Rodrigues dos Santos, é psicólogo (CRP 09/9447) pela PUC
Goiás (Brasil), com graduação sanduíche e estágio em terapia
sistêmico-relacional de casais e famílias pela Universidad Católica del Norte
(Chile). Possui aperfeiçoamento profissional pela Brown University (Estados Unidos)
e Fundación Botín (Espanha). Mestrando em Psicologia pela Universidade Federal de
Goiás (Brasil). Atualmente é pesquisador pela CAPES/MEC e presidente da Rede Goiana
de Psicologia.
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