A história da humanidade está
repleta de passagens onde o adultério foi cena principal: Casos famosos de
traição amorosa são vários, desde o de Dalila, traindo Sansão na Palestina no
século XI a. C., aos contemporâneos, como os casos do príncipe Charles da
Inglaterra, que traiu a princesa Diana ou do presidente dos Estados Unidos Bill
Clinton, com uma de suas secretárias, Mônica Lewinsky. Apesar de ser um
fenômeno relativamente comum na história da humanidade, não se tem notícias de
uma civilização que o considerasse normal.
Mesmo na antiguidade, com alguns
povos mantendo tradições de concubinato ou poligamia/poliandria, relações
sexuais fora de contratos sociais eram consideradas nocivas e passíveis de
punição: Sociedades semitas puniam, e ainda hoje, em alguns países orientais,
pune-se o adultério com apedrejamento até a morte (entre outras modalidades). Mas
porque isso acontecia ia muito além do direito teocrático, ligado à moral religiosa
- Em uma época em que o machismo era status
quo, uma regra quase universal, as mulheres sofriam maior dano a qualquer
violação da regra da fidelidade matrimonial: As mulheres eram consideradas
propriedades dos maridos, não podiam trabalhar e possuíam a vida social muito
privada, e o casamento à época era um verdadeiro contrato social, onde além do
pagamento do dote por parte do noivo ou da noiva, a mulher era entregue
totalmente à mercê do sustento do homem. Qualquer caso de “abandono” da mulher
por parte do homem poderia ser uma sentença de morte para a esposa. Daí a
necessidade de se terem bem reguladas as relações afetivo/sexuais entre as
pessoas.
Mas não é o objetivo deste texto
entrar no mérito histórico ou moral do fenômeno do adultério, muito menos
investigar as possíveis causas para o mesmo, mas realizar uma pequena reflexão
sobre as consequências psicológicas de tal ato.
Existe uma frase de Vigotski,
escrita em seu texto “Psicologia Humana Concreta” que ilustra bem o que quero
dizer:
“Nos tornamos nós
mesmos através dos outros” Vigotski (1929/1986, p. 67)
O que Vigotski queria dizer com
este fragmento é que nos constituímos enquanto indivíduos com base na nossa
relação com os outros, e que as ações que tomamos ou que os outros tomam,
repercutem mutuamente uns nos outros. O que é notável na psicologia vigotskiana
é o fato de que a dialética é um de seus pilares e, seguindo esta ideia,
podemos dizer que, da mesma forma, nos relacionamos com o outro com base em nós
mesmos: Nossos medos, angústias, limitações, alegrias, todas são refletidas nos
outros. É o que a psicanálise nomeou de mecanismo de projeção (Fenichel, 1981):
Nós atribuímos aos outros às nossas próprias “questões psicológicas”, sejam pensamentos,
emoções ou desejos; e é neste ponto que devemos entrar.
Já é sabido que a pessoa traída
geralmente é acometida de pensamentos destrutivos, depressivos, depreciativos a
respeito de si ou do parceiro, sente raiva, ódio, angústia e muitos outros
sentimentos considerados negativos, sendo um processo de “luto sentimental” natural
após ver-se na situação de ser traído. Todavia, o que se passa com os
sentimentos de um traidor?
Muitos poderiam pensar que esta
pessoa se encontra em um estado mais cômodo ou confortável, pelo fato de não
ter sido o passivo da traição, e é neste ponto que eu devo discordar. Em
primeiro lugar, devemos desfazer o pensamento hollywoodiano da vítima e do
algoz da traição, afinal de contas, as pessoas só o são se colocarem-se nesta
posição, pois há muitas maneiras de ser sujeito de suas próprias
emoções/pensamentos neste processo. Não que isso queira dizer que, a traição
seja um ato aceitável por parte de qualquer um dos lados, pois rompe-se um
contrato psicológico, um contrato emocional, que foi acordado de bom grado
entre duas partes, e isso em si não é uma coisa simples ou corriqueira. Pois
bem, a segunda coisa que deve-se desmistificar é que a pessoa que trai não
sente os efeitos da traição, ou que não é passível dela: A traição não é feita
contra uma pessoa, mas contra o relacionamento das duas pessoas. E quem quebra
este vínculo, com certeza irá sentir a dor das perdas do fato.
Mas o que de fato o traidor
perde: Além do vínculo de confiança com o parceiro, ele perde o vínculo de
confiança consigo mesmo. Levando em consideração o mesmo mecanismo da projeção,
basicamente, pode ocorrer o seguinte “pensamento” (não encontrei outro termo
para essa dinâmica) inconsciente: “Se eu que me conheço fui capaz de trair
minha/meu esposa/esposo, como posso confiar nela/nele?!”, e assim cria-se uma
relação de desconfiança. O passo natural para isso é transferir a sua
desconfiança para todos os relacionamentos possíveis, até quebrar tal ciclo,
com muita terapia.
Neste sentido, um traidor pode (e
note que sempre uso as afirmativas em tom de possibilidade, pois cada caso é um
caso) ser uma pessoa que irá ter a desconfiança como um dos nortes das relações
de sua vida, o que pode levar a sua vida à um verdadeiro inferno emocional, e
daí ao surgimento desde os ciúmes patológicos às formas mais variadas de
neuroses.
O que devemos refletir com este
texto é o seguinte: Contratos emocionais são coisas muito importantes, e só
devem ser quebrados se isso for de mútuo conhecimento (note que nem digo
consentimento, pois nenhum ser humano é saudável sendo obrigado a viver sobre
qualquer jugo), sendo que, se uma pessoa quiser ser feliz, ou ter
relacionamentos estáveis, deve aprender a respeitar os contratos emocionais a
que se obriga (seja namoro, casamento, etc), como sinal de própria maturidade
emocional, ou de ser sujeito de seus próprios desejos.
Referência
Fenichel, O. (1981). Teoria psicanalítica das neuroses. São
Paulo: Atheneu.
Vigotski, L. S. (1986). Concrete Human
Psychology. Soviet Psychology, 27(2),
53-77.
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Imagem: Extraída do Google Imagens
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Murillo Rodrigues dos Santos, é psicólogo (CRP 09/9447) pela PUC Goiás (Brasil), com graduação sanduíche e estágio em terapia sistêmico-relacional de casais e famílias pela Universidad Católica del Norte (Chile). Possui aperfeiçoamento profissional pela Brown University (Estados Unidos) e Fundación Botín (Espanha). Mestrando em Psicologia pela Universidade Federal de Goiás (Brasil). Atualmente é pesquisador pela CAPES/MEC e presidente da Rede Goiana de Psicologia.
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